A Superliga Feminina 2019/2020 foi encerrada e a masculina está temporariamente suspensa – por conta da pandemia do coronavírus -, mas um dos pontos negativos dessa temporada no Brasil, certamente foram as polêmicas envolvendo a arbitragem.
Conhecida pelo seu jeito firme de apitar e bastante popular nas redes sociais com a torcida – justamente por dizer o que pensa -, a árbitra Débora Santos conversou com o Web Vôlei e admitiu que as críticas, na maioria das vezes, foram pertinentes. Mas, ponderou, dizendo que, por outro lado, não há investimento na arbitragem brasileira para garantir um trabalho de maior qualidade.
As 46 anos, 24 deles como árbitra, a carioca Débora denuncia que não há reuniões periódicas nem tentativas de padronização das marcações para buscar minimizar os erros. Contou casos engraçados sobre sua relação com atletas e comissões técnicas durante os jogos, revelou que já sofreu e que ainda sofre preconceito por ser mulher num ambiente predominantemente masculino; cravou que sabe de profissionais que se sentem, sim, intimidados na presença de técnicos renomados e prega respeito à profissão: “As críticas à arbitragem, na maioria das vezes, foram justas e pertinentes. Só acho que foram feitas de maneira deselegante e grosseira, sem se avaliar tudo que está envolvido”, disse.
Críticas
A arbitragem do Brasil é uma das melhores do mundo, mas isso não se refletiu nas atuações da Superliga. O problema é que não se investe em arbitragem. Se o árbitro não investir em si próprio, não há investimento na arbitragem, não há reunião de padronização, não há contato entre as federações e a Confederação. Cada federação faz o seu curso. Arbitrar é muito difícil. O vôlei tem uma regra. Além da regra, o vôlei tem um guide line (orientações para a atuação dos árbitros), um case book, que é um livro de casos específicos que fogem à regra, situações atípicas, que orientam o árbitro a agir. E tem o regulamento das competições e cada regulamento de cada competição é diferente. E muitas vezes o que está no guide line, o case book e no regulamento das competições contraria a regra. Aí fica muito complicado para o árbitro atuar. Você está ali no momento em que tem de tomar uma decisão e tem de lembrar de quatro documentos diferentes, que te muitas vezes te dão orientações diferentes sobre o mesmo assunto.
Intimidação
Essa questão de o árbitro se sentir intimidado por técnicos renomados acontece. Alguns técnicos não fazem o seu papel e se acham no direito de intimidar, de ficar indo para a TV e ficar falando mal da arbitragem. Pra mim isso é um comportamento deplorável. Cada um responde pelo seu próprio comportamento e eu respondo pelo meu.
Erros
Ninguém ajuda em nada o desenvolvimento da arbitragem. Mas que cobrar que elo árbitro seja perfeito, quando ninguém é. O técnico erra, o atleta erra pra caramba, e quando o árbitro erra – não estou falando que é justificável não, acho que o árbitro não deve errar – se coloca uma carga negativa em cima de um erro do árbitro que não é justa. Eu sei que existem momentos cruciais em que o erro da arbitragem influencia muito na questão psicológica da equipe. Mas quando o árbitro erra uma bola, vira todo mundo vai meter o pau no cara.
“Não quero esse árbitro no meu jogo”
Não é raro um clube chegar na sua federação e falar: não quero esse árbitro no meu jogo. E normalmente não é porque o árbitro não é ruim. É porque o árbitro não baixa a cabeça para ele. Eles querem os árbitros que eles consideram que podem levar a melhor. E isso acontece com frequência. A coisa é muito mais profunda. Não existe vontade política para solucionar o problema da arbitragem.
Questões econômicas
Se você avaliar a Superliga, por questões econômicas, os teoricamente árbitros mais experientes da confederação, os mais gabaritados, que já atuaram em Mundiais e Olimpíadas, se eles não estiverem uma equipe na competição (se não moraram na mesma cidade ou Estado que possuam times na Superliga), eles não atuam na fase classificatória. Então, ele passa praticamente a competição inteira sem atuar e chega num jogo decisivo é colocado do nada para atuar, sem estar em ritmo de jogo, sem conhecer as equipes. Não é que ele vai ser ruim, mesmo porque ele não é ruim. É porque você vai melhorando e ganhando ritmo com o tempo.
Falta de ritmo
O erro não está só aqui. A Federação Internacional faz uma escala de árbitro e ela só escala esses árbitros. O Brasil tem 20 árbitros internacionais. Tem mais 2 que já fizeram o curso mas não podem atuar ainda porque o número máximo de árbitros do Brasil é 20. E nós temos mais 4 árbitros continentais. Dentro desses 20 árbitros internacionais menos de 10 atuam internacionalmente com frequência. Todos os outros, e são árbitros internacionais há muitos anos – eu sou amais jovem desse grupo, sou desde 2013 – e eu pouco atuo internacionalmente. Porque é uma política da FIVB. Acho muito fácil alguém chegar lá e criticar.
Irmãos
No jogo que eu estava atuando com o meu irmão (Felipe Antônio Santos da Silva, na partida entre Sesc e Sesi SP, no dia 29 de fevereiro, pela oitava rodada do returno da Superliga Masculina) teve uma bola super polêmica e que eu falei para ele dar o ponto para o Sesc porque a ação do William tinha sido irregular. Ele considerou que não tinha sido irregular e deu o ponto para o Sesi. Todo mundo caiu de pau na arbitragem nas redes sociais. As pessoas se esquecem que eu e ele tínhamos de tomar uma decisão sobre uma bola naquele momento, sem ver replay, sem ter computador, sem voltar a jogada. Só com a visão dele e a minha. E ele, como primeiro árbitro, tomou a decisão dele baseada na visão dele. A aí o pessoal vai para a rede social para meter o pau na arbitragem depois de rever o lance 5, 6 vezes na TV. Não sou avessa às críticas. Acho que a maior das criticas são justas, mas acho que a maneira como as críticas são feitas tem sido extremamente cruéis com os árbitros.
Cartões em excesso?
Não, não vejo abuso de poder por conta dos cartões. A regra nos faculta a aplicação de cartão direto em algumas situações. O que está acontecendo é que as pessoas estão passando do limite muito rápido. E aí a única maneira que o árbitro tem para manter o controle da partida e da disciplina, muitas vezes, é com a aplicação do cartão vermelho direto, sem ter dado uma advertência verbal antes, ou cartão amarelo. Às vezes, a gente dá cartão por um comportamento absurdo e a pessoa reclama: “Ah, você tem de me avisar primeiro”. Eu não tenho de avisar primeiro. Os participantes têm de ter conhecimento das regras, das normas de conduta. E tudo se coloca na responsabilidade do árbitro. O técnico ou o atleta chuta a placa, puxa a rede e acha que ele só tem de ser advertido. Esse comportamento não pode ser tolerado. Existe uma escala de penalidades. Se você já começa com uma conduta que é passível de cartão amarelo ou cartão vermelho, tem de levar cartão. E os árbitros não podem se omitir. Eu acho que os árbitros têm sido menos pacientes ultimamente. A gente sempre tentou levar na conversa em prol do espetáculo. Mas isso tem de ser uma via de mão dupla. Existem atletas e comissões técnicas que são um exemplo de comportamento. Ainda existem. Mas o que chama a atenção na TV, dos espectadores são aqueles que não têm esse padrão. As pessoas estavam tão acostumadas a ver o árbitro deixar no limite para depois penalizar, que elas ficam assustadas quando os árbitros fazem o uso da regra. Não vi abuso de poder nos últimos jogos. Todos os cartões diretos que eu vi foram aplicados dentro da regra.
Voltar o ponto
Se o árbitro não tem certeza da marcação e ele trabalha em equipe, alguém da equipe teve certeza da marcação. Um árbitro pode e deve utilizar a marcação da sua equipe para tomar uma decisão. A dúvida pode ser do arbitro, do segundo árbitro ou do bandeira. Mas alguém tem que ter certeza daquela marcação. Se por acaso a bola foi duvidosa e ninguém viu, ou seja não houve uma marcação definitiva ele pode voltar o ponto sim. Mas não é o ideal. Não dá para voltar todas as bolas duvidosas, por conta da reclamação dos times. É um trabalho em equipe. Não posso ficar voltando a bola porque um acha uma coisa e o outro acha outro. As pessoas tem de aprender a confiar na arbitragem.
Popular nas redes sociais
(risos) Acho que sou popular nas redes sociais porque eu não me omito. Eu dou a minha opinião. As pessoas perguntam e eu respondo. Eu tenho opinião formada. E também eu fiquei muito popular porque não era muito natural ver uma árbitra em partidas masculinas. Teve narrador que já me chamou de intensa (rs). Eu sou muito incisiva. Sou chata mesmo! Quando estou apitando tento ser cordial, ser elegante, lidar com as situações de maneira mais tranquila. Mas, respeito é uma via de mão dupla. Se você gritar comigo, enquanto árbitra eu não vou gritar com você. Mas vou usar das minhas prerrogativas para manter você num comportamento adequado. Se eu tiver de usar o cartão com você, eu vou usar. Eu não me importo muito se o atleta é um completo desconhecido ou se é um capitão da Seleção Brasileira. A regra é pra todos. A conduta, o padrão de comportamento é para todos. Eu entendo que o ser humano é movido por emoção , que às vezes no calor do jogo o atleta perde um pouco a linha, mas eu tenho de entender que existe um limite do que é tolerável e do que passível de penalização. E isso fica muito claro nas minhas atuações. Mas isso não impede que eles me critiquem. Eu sou bastante criticada. Eu não sou só fofa não. Eu recebo algumas mensagens bem deselegantes. Mas levo numa boa porque eu acho que a torcida está no seu papel. O problema é que a maioria das pessoas usa as redes sociais como uma arma anônima. Você fala o que quer e ofende sem consequência nenhuma. Quando as pessoas vão me ofender, eu tento responder com elegância se for possível. Se não for possível eu prefiro ignorar. Tem uma coisa que eu não vou fazer é entrar em discussão nas redes sociais.
Já bateu boca com treinador?
Não me lembro de ter batido boca com nenhum treinador não, mas tenho certeza que já aconteceu. Para mim, tudo o que acontece no jogo fica no jogo. Acabou o jogo, já esqueci. Eu vou sair da quadra, a não ser que haja alguma ofensa pessoal, o que acontece, mas é raro, acabou o jogo, acabou o problema. Já tive algumas conversas até ríspidas porque a pessoa não estava compreendendo o papel dela no jogo e a gente tem de marcar. Quando é possível explicar, a gente explica. Mas eu não posso parar o jogo para explicar para o técnico por quê da marcação. Ele tem de saber a regra. Na final da Superliga passada, por exemplo, no primeiro jogo (Itambé Minas x Dentil Praia Clube) eu estava de segunda árbitra e foi pedido um desafio pelo Praia. A aí o técnico do Minas falou que queria desafiar se a bola fosse contrária ao resultado. E o Paulo Coco falou que ele (Lavarini) não poderia desafiar porque já tinha passado os 8 segundos. Eu tentei explicar que não iria descontar os segundos para o Lavarini porque primeiro tinha de contar os 8 segundos dele (Paulo Coco). Ou sejas, esse tipo de coisa não era para eu parar o jogo para explicar. Tenho de seguir com o procedimento. Ele não ficou lá muito satisfeito, mas acho que ele superou (risos).
Já bateu boca com jogador?
Também não me lembro de discussão mais ríspida com jogador. A não ser que algum levou para o lado pessoal, não gosta de mim e não me falou nada (rs). Eu lembro de uma situação engraçada. Na hora não foi engraçado, mas depois foi e virou até meme na internet nos grupos de vôlei. O Evandro (oposto do Sada/Cruzeiro) veio questionar uma marcação na semifinal da Superliga passada, mas ele veio daquele jeito, quase me engolindo, né (risos). E ele falando, falando e eu só respondi assim: “Você não é o capitão. Filipe está na quadra”. E ele ficou bravo (risos). Ficou bem aborrecido e falou bastante pra mim. Eu atravessei a quadra e pedi para o primeiro árbitro dar um cartão amarelo para ele. Não ficou muito satisfeito, mas espero que também tenha superado (risos). O pessoal fez meme…. e ficou engraçado porque parecia que ele iria me engolir mesmo. Eu lá em baixo e ele lá em cima (risos). Já tive aborrecimentos com jogadores, claro, mas é contornável em quadra.
Vídeo check
Acho que é necessário, porque o jogo está muito veloz e somos humanos. Mas acho que o vídeo check tem de ser uma complementação da arbitragem e não uma substituição da arbitragem. O que está acontecendo é: “Ah, eu tenho o vídeo check então eu posso tirar os dois juízes de linha”. E aí você para o jogo absurdamente o tempo todo porque toda bola vai ser verificada. E, com isso, acho que o esporte perde o poder comercial. O vôlei mudou muito durante os anos justamente para que ele pudesse diminuir o seu tempo para se encaixar nas grades de TV. E se você parar para avaliar a forma como o sistema é usado hoje, tem situações em que o jogo fica parado dois minutos por conta do vídeo check porque não se confia. Tem bolas tranquilas em que a marcação do juiz de linha é suficiente. Só se deve usar mesmo em caso de muita dúvida. Isso acontece com perfeição no tênis, por exemplo.
Viver de arbitragem
Não tem nenhum árbitro que eu conheça que viva de arbitragem, porque isso não é possível. Porque a remuneração não é boa, não tem investimento. Então uma pessoa trabalha o dia inteiro na função que ela tem – no caso eu sou gerente de banco – depois eu saio do meu trabalho e vou fazer o meu jogo. Eu, particularmente, só aceito escalas quando tenho condição de atendê-las. É muito difícil, por exemplo, aceitar escalas numa semana de pagamento, porque o meu banco é muito cheio. Eu saio tarde, fico muito cansada e não dá para, no Rio de Janeiro, atravessar a cidade e apitar cansada uma partida que vai decidir a carreira das pessoas. Eu acho que tenho de ter responsabilidade com isso.
Usar mais o vídeo check
Eu não acho que exista dependência do vídeo check não. Acho até que os árbitros tinham de usar mais o vídeo check, eles usam pouco. Pra mim o jogo não mudou. Vou continuar usando as minhas marcações independente do vídeo check. Se eu marcar e desafiar e a minha marcação estiver errada, que maravilha que existe um recurso que leva justiça para o jogo. Vamos usar, ter a humildade do jogo, admitir que somos falíveis e que tem um recurso que pode nos ajudar.
Preconceito por ser mulher
Um monte. Já ouvi muita gracinha, muita piadinha da arquibancada, piadinha de técnico, já fui para campeonatos em que eu não tinha banheiro para mim, não tinha vestiário e tinha de dividir com os homens. Já fui para campeonato em que não tinha nem quarto, porque esqueceram que tinha uma árbitra e dividiram os quartos como se todos fossem homens. Eu já deixei de ir a campeonatos porque eu era mulher. É bem complicado. Competência independe de gênero. Isso deveria ser regra para todas as profissões. Já sofri muito preconceito e ainda sofro um pouco. Mas, não me incomoda.
Como lidar com o erro
A gente não pode ficar remoendo o erro durante o jogo. Porque se não você não vai estar focado na jogada seguinte. Por isso, a gente faz as nossas marcações com a maior confiança possível. Marcou, tem a contestação, mas passou e esquece. Foca na jogada seguinte. Se não, por ser humano, você vai deixar se influenciar no futuro por aquele erro que você acha que cometeu. E isso é a morte para o árbitro. Porque você não pode nem pensar em compensar. “Ah, meu Deus, eu errei a marcação para essa equipe então agora vou marcar assim para compensar…” Se você parar para pensar nisso, já era. Porque árbitros têm de ser instintivos. Têm de ver uma jogada e marcar de acordo com o seu conhecimento e a sua convicção. O árbitro que se dispões intencionalmente prejudicar ou favorecer uma equipe vai ser perder no jogo. Se ficar racionalizando o que vai marcar de acordo com a necessidade, aí complica. É muito ruim quando você no meio do jogo tem certeza de que cometeu o erro, porque fica inconscientemente se culpando. Não pode deixar isso te influenciar.
Como virou árbitra
Eu falei algumas vezes que não era para eu se árbitra. Não era uma coisa que eu queria para a vida. Aconteceu de eu parar de jogar e estava na faculdade. Aí teve um curso de arbitragem perto da minha casa e eu resolvi fazer. Não tenho mais muitas aspirações. Eu apito voleibol olímpico e paralímpicos. Já fui a diversas competições no voleibol paralímpico. Na verdade, já cheguei até mais longe do que eu esperava.
Futuro
Todo árbitro quer apitar uma olimpíada. É o auge. Se eu dissesse que não ficaria feliz em apitar uma olimpíada estaria mentindo. Mas, a gente entende as situações ao longo do tempo. Não é só uma questão de competência nem de oportunidade. Tem política envolvida, tem outras questões que fogem à nossa alçada. Gostaria muito de apitar uma competição no Japão também. Um sonho antigo. Eu não crio expectativas para não ter decepções. Meu objetivo agora é que a arbitragem seja mais respeitada. Se eu puder fazer o que estiver ao meu alcance para que os árbitros que vierem depois de mim não passem as dificuldades que eu passei, que tenham uma estrutura melhor, um apoio maior, ótimo. Acho que temos de mudar a cabeça. Sei que tudo envolve dinheiro e não vai mudar de uma hora pra outra. Mas, enquanto não se mudar a mentalidade das pessoas, o nível da arbitragem só vai piorar.