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Mara revela drama com a mãe. Desafio a mais para quem já superou outros tantos

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Uma história inspiradora, de muita força, determinação, superação e resiliência. Não tem como não se emocionar com a vida da central Mara Leão, 27 anos, um dos destaques do Itambé/Minas na temporada, que passa neste momento por mais um drama pessoal.

A mãe, dona Leodita Ferreira, foi atropelada no final do ano passado, na cidade de Ravena(MG), no Vale do Rio Doce – enquanto a filha disputava o Mundial da China -, e está em um quadro de tetraplegia. A família optou por não falar do acidente para a jogadora assim que ele aconteceu, para não atrapalhar a concentração de Mara no torneio, e aguardou o seu retorno ao Brasil. Desde então, Mara se divide entre os cuidados com a mãe e a família, e os compromissos com a camisa minastenista.

Superar situações difíceis não é novidade na vida da jogadora.

Há 13 anos, eu era repórter do Jornal Estado de Minas, em Belo Horizonte (MG) – setorista de vôlei, esporte que eu amo desde criança e cobria com muita paixão, acima de tudo. Uma diretora do Mackenzie, de Belo Horizonte (MG), tradicional clube formador da capital,  ligou para a redação para passar uma pauta, em  princípio, despretensiosa: uma garota, jogadora das categorias de base, estaria perto de deixar os treinamentos porque estava tendo dificuldades em comer fora de casa e pegar os ônibus que precisava tomar desde Sabinópolis, distrito de Sabará, na Grande BH, até a Zona Sul da capital, e ainda frequentar a escola.

Mara é titular do Itambé/Minas (Orlando Bento/MTC)

Podia ser mais um telefonema de atletas que querem conseguir patrocínio por meio de uma matéria. Mas, a diretora foi insistente. “A família dela precisa. Ela é muito pobre, tem potencial. Tem 14 anos, 1,82m de altura”. A altura nos impressionou. Ok. Vamos ver qual é. Na pior das hipóteses, seria uma boa história para se contar. Mas acabou sendo muito mais.

Discuti a pauta com o editor Cláudio Arreguy e decidimos acompanhar um dia na vida da menina, desde sua saída de casa, às 5h30 da manhã, no escuro – quando tinha de percorrer um percurso de mais de 1 km na estrada de terra antes de chegar na beira da estrada e pegar o primeiro ônibus do dia -, até as 22h, quando ela normalmente retornava para casa, onde morava com a mãe e os três irmãos menores.

O objetivo era registrar as dificuldades da rotina da garota, que era lapidada com cuidado pelo clube mineiro, mas a mãe não tinha dinheiro para pagar as passagens de ônibus, nem os lanches que ela precisava fazer enquanto estava fora de casa. Funcionários do Mackenzie faziam vaquinha, davam pão com manteiga à tarde, mas havia o risco de ela desistir dos treinos para ter de trabalhar e começar a ajudar a família.

Fomos para a pauta. O local era de difícil acesso e complicado de chegar de carro. A estrada até o casebre de um quarto, cozinha e banheiro era de terra. Quando chovia, virava um lamaçal. Não tinha como passar. Dentro da casa, as dificuldades eram visíveis. Um fogão, uma beliche, colchões, alguns mantimentos e uma geladeira que não funcionava. Estava estragada e era usada como dispensa para guardar arroz, feijão e vasilhas. “Meu sonho é beber água gelada em casa”, disse Mara, um pouco constrangida, quando percebeu que reparamos que a geladeira antiga não estava ligada na tomada. Aliás, não havia energia elétrica na casa.

Apesar da realidade dura, Mara carregava um sorriso largo, bonito e sincero. O mesmo que vemos hoje, quando ela comemora um ponto, um título, ou aparece nas redes sociais das companheiras dançando e fazendo palhaçadas – um das suas marcas registradas. Ela não tem perfil no Facebook ou no Instagram, apesar da forte campanha que os fãs e torcedores do Minas fazem para que ela faça um perfil próprio – existe até uma hashtag #Marafazuminsta em ação.

De poucas palavras, a menina alta e magra nos mostrou como era um dia em sua vida: caminhada a pé no escuro para chegar ao ponto de ônibus numa estrada movimentada, que a deixava no Centro de BH. Dali, precisava pegar mais um ônibus para chegar à escola pública às 7h. Ao meio-dia, ia para um restaurante que vendia comida por quilo perto do Mackenzie – o dono estabelecimento, consternado com a situação da menina, oferecia o almoço de graça.

Ela ia pra o Mackenzie, onde passava a tarde estudando, concluindo os deveres de casa e fazendo os treinos físico e com bola até 20h, quado começava a fazer o caminho de volta, com dois ônibus, caminhada a pé na estrada de terra escura, para dormir e começar tudo de novo no dia seguinte, mantendo dois sonhos: o de jogar vôlei e dar uma vida melhor para a mãe e os irmãos, e o de beber água gelada em casa.

Ao longo do dia, Mara nos contou a história de como o vôlei entrou em sua vida – e que muitos já sabem, pelas várias entrevistas que ela já deu desde que passou a vestir a camisa de clubes tradicionais como Minas, Unilever (RJ) e São Caetano (SP). Era Natal e um restaurante popular na Avenida Afonso Pena, no Centro de BH, tinha o costume de oferecer um almoço natalino especial, ao custo de R$ 1. Esse foi o programa da família naquele dezembro de 2005. Mara chamou a atenção de uma moça, chamada Márcia, que jogava no Mackenzie.

Espantada com a altura e o tipo físico magro e longilíneo da menina, Márcia perguntou se ela jogava vôlei. Sincera, em uma casa sem TV e pouco acesso à informação, Mara respondeu que não tinha ideia do que era “isso”. A moça insistiu. Deu o número do telefone dela para a mãe e reforçou que a família procurasse o clube. Dona Leodita, escaldada pelas dificuldades da vida, do racismo e do preconceito que sempre sofreu na pele, disse para a filha esquecer o assunto. E falou uma frase que Mara repete sempre nas entrevistas, porque, como ela mesma admite, a marcou muito: “Deixa para lá, minha filha. Preto e pobre não têm vez nesse país”.

Mas, a menina não deixou para lá. Por algum motivo, mesmo sem saber do que se tratava e onde ficava o Mackenzie, insistiu até que a mãe a levasse nesse tal de vôlei. Afinal, como a moça do restaurante havia dito, ela tinha futuro no seja lá o que fosse vôlei. E futuro era o que Mara queria dar para a família.

Mara no Sul-Americano de Clubes 2019 (Orlando Bento/MTC)

Num dia de tarde, depois da escola, lá foi dona Leodita – um tanto quanto desconfiada, mas querendo ficar livre da insistência da filha – levando Mara à tiracolo para o Mackenzie. A menina se preparou para um grande evento: colocou sua melhor roupa – um vestido – um salto alto, passou batom e quando chegou ao ginásio, se deu conta de que não era nada do que imaginava. Levou um susto. Não teve como fazer um teste. Precisou voltar no dia seguinte. Mas, não tinha tênis. Fez o teste com um tênis emprestado. E passou!

Em menos de uma semana, o universo moveu mundos e fundos e a ajuda começou a parecer em forma de anjos. Um deles, a oposto Sheilla. Já atleta da Seleção Brasileira, a jogadora, hoje bicampeã olímpica, que fora revelada nas categorias de base do Mackenzie, doou tênis, meias, bermudas e material de treino à jovem promessa. O clube ofereceu passagem de ônibus, o restaurante do lado deu almoço, a matricularam em uma escola pública perto do Mackenzie e as coisas foram acontecendo.

Ali nascia essa atleta, agora com 1,90m de altura, plena e segura na rede do Itambé/Minas, conquistando a torcida com sua raça, seus bloqueios certeiros e evoluindo cada vez mais tecnicamente. Ela é bicampeã da Superliga com o Sesc RJ (na época Unilever) de Bernardinho, vestiu a camisa da Seleção Brasileira em 2017 – na última edição do Grand Prix (hoje Liga das Nações) – e está no Minas há duas temporadas. Na atual, conquistou o Campeonato Mineiro, o vice-campeonato Mundial de Clubes da China, a Copa Brasil, o Sul-Americano e é um dos destaques do Itambé/Minas, líder isolado da Superliga.

Na época, a matéria repercutiu bastante. Pessoas ligavam para a redação do jornal e mandavam e-mail perguntando como poderiam ajudar. Queriam doar cestas básicas, ofereciam cursos, roupas… Foi emocionante ver o envolvimento social. Passamos o contato do Mackenzie para quem quisesse contribuir e a vida seguiu. Eu deixei o jornal dois anos depois para trabalhar e morar no Rio, fui cobrir outros assuntos, e não tinha mais tanto contato com o mundo do vôlei.

Um dia, assistindo a um jogo pela TV, vejo ninguém menos que Mara, saindo do banco e entrando em um jogo do Unilever, o melhor time do Brasil, treinada por ninguém menos que Bernardinho, o melhor técnico do mundo. Fiquei atônita. Era a menina da entrevista! Aos 18 anos, ela já era uma realidade e começava a dar os primeiros passos como profissional. Um filme passou pela minha cabeça. Foi impossível não chorar. Que história, Mara. Que história Mara-vilhosa. Que exemplo para ser contado! Sonhos se realizam quando a força de vontade é maior que as desculpas. A menina de Sabinópolis já tinha realizado dois sonhos: deu uma vida melhor para a família. E, finalmente, podia beber água gelada em casa.

Mara, na época do Unilever (RJ), onde foi foi bicampeã da Superliga, com Bernardinho como treinador (Divulgação)

Em entrevista ao blog Saída de Rede, publicada na semana passada, a jogadora mineira falou da infância humilde, de Seleção Brasileira, racismo, família e futuro, mas principalmente falou uma das suas principais características – e não é o sorriso fácil ou o bloqueio mortal. Falou de resiliência.

Confira abaixo alguns trechos da entrevista:

Início de tudo

– O tempo passou, eu insisti e a minha mãe falou para nós irmos lá tentar, já que eu não estava fazendo nada. Todo mundo ficou me zoando porque fui de vestido e salto. Cheguei lá e vi as meninas todas suadas, de tênis, descabeladas e aí entendi que não era nada do que eu pensava. Então comecei a jogar lá no Mackenzie e passei a gostar. Acho que a gente tem medo ou diz que não gosta de tudo o que a gente não conhece. Mas, na verdade, eu não sabia o que era e estava bastante receosa para começar a jogar vôlei. Foi assim que começou a minha trajetória.

Mara (c), com a Seleção Brasileira, em treinamento no Mineirinho, em 2017 (Orlando Bento/MTC)

Discriminação

– Essa é uma realidade do nosso país. O preconceito existe sim. Eu nunca sofri discriminação direta, de alguém chegar e falar alguma coisa. Mas, muitas vezes, só pelo olhar das pessoas você já sabe que aquilo é uma forma de preconceito. Pela maneira como elas te olham por você estar em um lugar melhor, um restaurante, sabe? Ou por você conseguir comprar alguma coisa a pessoa te olha diferente. No esporte, eu acho que é um pouco menos, mas o racismo está presente sim no dia a dia dos negros no Brasil.

Minas e Lavarini

– Nesses dois anos em que estou aqui tem sido ótimo, estou ganhando muita experiência. Ele é um cara inteligente, estudioso e sempre quer dar o melhor de si. E, além de pensar dentro de quadra, ele se preocupa com a gente, em saber como nós estamos. Isso é raro porque às vezes as pessoas só cobram muito e não observam o lado pessoal, humano, de algo que você esteja passando. Ele cuida de cada detalhe, de cada uma. E ainda traz uma forma diferente de treinar e de jogar lá de fora, o que é muito bom.

Sorriso é a marca registrada (Orlando Bento/MTC)

Disputa da titularidade

– Eu não estava numa fase muito boa no Mundial e a Mayany chegou arrebentando. É uma menina de talento e tem muito a crescer. Tem tudo para se tornar a grande jogadora que ela está sendo, uma vez que já iniciou a trajetória dela. Eu achei muito bacana porque ela completou o grupo. Deve jogar quem estiver melhor. Todos nós trabalhamos para isso e se não acontecesse desta forma seria injusto. [A competição] é ótima para nós e só tem a acrescentar no crescimento do time.

Mãe hospitalizada

– Temos muita força em Deus e cremos que Ele pode fazer tudo. Acreditamos que ela possa voltar, com o tempo, a ter os movimentos. Ela ficou internada por cerca de dois meses e meio, passou por uma cirurgia e faz uma semana que, graças a Deus, está em casa. Infelizmente, ainda em estado de tetraplegia. (…) Eu sempre passei por muitos momentos difíceis na vida, nunca tive nada fácil. Nada nunca foi fácil. Mas o momento mais terrível para mim foi ver a minha mãe naquele estado. Uma mulher forte, bonita, guerreira, que criou três filhos sozinha e sempre trabalhou muito. Vê-la sem poder se mexer, sofrendo, é horrível. O que mais dói é saber que a gente não pode aliviar o sofrimento, a dor que ela sente. A gente dá amor, carinho, mas o que ela sofre não tem como a gente amenizar. Nossa família está fazendo o máximo e tudo está nas mãos de Deus. Agora só o tempo mesmo.

Bicampeã Sul-Americana de Clubes, na semana passada (Orlando Bento/MTC)

Sonhos

– Quando comecei a jogar vôlei, meu maior sonho era tentar dar uma casa melhor para a minha mãe, que toda a vida sempre foi muito humilde, e ajudar meus irmãos. Isso foi algo que eu consegui. Hoje, jogando, posso ajudá-los quando eles precisam. Esse sempre foi o meu sonho. O que espero é que continue assim, né? Que eu consiga dar o pouquinho que tenho. Isso é o que eu mais faço e quero no momento.

Por Patrícia Trindade

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Tags: Itambé/MinasMara

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