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Tifanny: “Desde criança eu sabia que era uma menina num corpo errado”

Em podcast ao Globoesporte.com, Tifanny fala sobre vida pessoal, carreira e os desafios de ser a primeira atleta transexual na Superliga
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Em podcast publicado nesta quarta-feira no Globoesporte.com, a ponteira/oposta Tifanny, do Sesi/Bauru, primeira transexual a atuar na Superliga de Vôlei, falou sobre o início da sua carreira no esporte – antes da mudança de gênero – os desafios da transformação, o período em que viveu na Europa e passou por altos e baixos, culminando com uma forte depressão, e como enfrentou o preconceito e as dificuldades para realizar o sonho de se tornar mulher e seguir no esporte.

Tifanny não gosta de falar sobre o seu nome de batismo.

– Não existe mais. Meu nome é Tifanny Abreu. É o nome que aparece no meu RG, no meu passaporte, no meu título de eleitor, no meu CPF… Passado é passado -, diz a jogadora de 35 anos, 1,91m de altura, que negocia sua permanência no Sesi/Bauru pela quarta temporada consecutiva.

Tifanny nasceu em Paraíso do Tocantins (TO), cresceu em Conceição do Araguaia, no Pará, e começou a jogar vôlei em Goiânia (GO), aos 16 anos, na escola. Ela conta que já sentia que era diferente desde muito nova:

– Desde criança eu já sabia que eu era uma menina num corpo errado. Eu já sabia que tinha algo errado em meu corpo, algo que eu não aceitava. Sempre gostei de todo tipo de esporte, mas não me encaixava por casa do meu jeito. Não era aceita. Quando conheci o voleibol, me adaptei muito com o esporte. Achava bonito ver o vôlei, mas ao mesmo tempo tinha medo de entrar em contato com as pessoas, por elas me julgarem pela forma como eu era. E no vôlei eu me senti acolhida. Eu era feminina. E também porque comecei a sofrer muito bullying nessa época. Foi crescendo mais, fui ficando mais feminina. Tem aquelas brincadeiras que chamam de brincadeira, mas na verdade é bullying. Lá dentro machuca. Na escola, no bairro, eu sofri muito. Chegou uma época que eu sofri um baque tão grande, que eu pensei: não quero ser essa pessoa. Quero ser importante. Quero ser uma pessoa que correu atrás do trabalho e do ganha pão – relembra.

(Instagram/Reprodução)

A ponteira contou que precisou abandonar o vôlei na época de juvenil, na escola, para trabalhar  e ajudar família com as despesas da casa.

– Sou de uma família de origem humilde e pobre. Com 16, 17 anos comecei a trabalhar e tive de parar o esporte pela primeira vez. Cortou meu coração, mas a vontade de jogar era grande, embora a necessidade de ajudar era maior. Eu trabalhava em uma padaria. Fiquei seis meses na padaria e pedi as contas para pegar o seguro-desemprego. Fiz um acerto com eles e fui jogar vôlei. Foi a primeira vez que eu deixei de lado o meu trabalho para seguir o meu sonho. Com dois meses que eu estava jogando, meu patrão me chamou para voltar para a padaria no período da manhã. O treino era longe da minha casa, em Goiânia, mas eu ia de todo jeito, a pé, de bicicleta, de carona – conta.

Ainda com o nome de batismo, Tifanny passou em um teste na cidade de Americana (SP), aos 17 anos, mas sentiu a dificuldade por não ter ajuda de custo e por ser considerada “velha”, pelas equipes de categorias de base.

– Muitas equipes não me queriam porque eu era muito feminina, porque eu era muito velha, porque eu era baixa… e voltei para Goiânia. Mas aí surgiu uma nova proposta – conta.

Tifanny conseguiu sua primeira oportunidade de jogar profissionalmente em Foz do Iguaçu, em 2007. Ela (ainda num corpo masculino) jogou a Superliga pelo time da cidade e depois atuou no exterior, nas ligas de Portugal, Espanha, Indonésia, Bélgica e França.

Em 2012, passou por uma forte depressão na Bélgica, abandonou o time no meio da temporada, e também o esporte. Foi quando percebeu que precisava assumir o gênero feminino e, para isso, passar por uma transformação completa.

– Eu chorava muito. Sofria demais. As mulheres davam em cima de mim, não entendiam como eu podia não gostar de mulher…. Em 2012, eu larguei a equipe no meio da liga, era a segunda maior atacante. Eu não conseguia gostar de outra pessoa porque eu não me aceitava, não conseguia ter uma vida, não ter um relacionamento. Foi quando eu decidi que iria começar a transição (de gênero) – revelou.

 

Tifanny fez um tratamento clandestino na Holanda, depois deu continuidade ao processo que é chamado de resignação sexual na Espanha, passando por todo o tratamento hormonal e cirúrgico.

– A minha transição de gênero foi completa. Eu necessitei fazer também a cirurgia, porque isso me incomodava bastante. Mas, para você fazer, é melhor quando o psicológico fala que você está pronta, que você realmente é uma mulher. Porque você pode fazer por algum impulso, e no final não ser o que você realmente queria e você entrar em depressão novamente… você vai assumir um novo corpo. Eu não me via uma mulher completa enquanto não fiz a cirurgia. Foi quando eu consegui ter um relacionamento e me sentir tranquila. Eu já vinha pensando nisso desde criança. Já sabia desde criança que eu tinha de mudar por completo. Lembrando que não são todas as meninas que querem fazer essa mudança completa. Muitas querem só ter a aparência feminina, mas continuam com o órgão genital – disse.

(Instagram/Reprodução)

O COI (Comitê Olímpico Internacional) não obriga que seja feita a cirurgia de redesignação sexual para que a jogadora trans seja aceita no esporte. É exigida apenas a comprovação do novo gênero e o controle dos níveis de testosterona , dentro de um limite de 10nM/litro por no mínimo um ano. Existe uma cobrança para que esse número baixe para até 5nM/litro de plasma, mais próximos dos níveis femininos, que ficam entre 2nM/litro e 5nM/litro.

– Eu faço o controle da minha testosterona por minha conta. Tenho de saber sobre o meu hormônio feminino, senão eu entro num tipo de menopausa. Eu não produzo testosterona por ter feito a cirurgia (ela e retirou os testículos, que são a principal fonte de produção de testosterona), então minha testosterona nunca vai passar de 2nM/litro. Depois da cirurgia, a parte masculina não existe mais – explica a jogadora.

Tifanny explica que, quem pensa em trocar de gênero apenas para obter vantagem no esporte feminino vai se deparar com outra realidade.

– Essa é uma das coisas que eu mais falo quando vou fazer uma palestra. Você não pode ser uma mulher trans para ser uma atleta de vôlei, basquete, seja qual esporte que for. Você pode virar uma mulher e não virar uma atleta. Os hormônios mudam a cabeça da pessoa. Você pode engordar, pode entrar em depressão…. Aquele que se acha um bom atleta e pensa que vai virar trans para jogar a Superliga… não vai jogar a superliga. Porque não é de um dia para o ou tro que você vai poder jogar no feminino. No meu caso, foram quatro para cinco anos. Você vai fazer o que? Vai estar no nível de uma mulher.

Depois de passar por todo o processo de mudança de gênero, Tifanny retornou ao Brasil para atuar no Sesi/Bauru. E conta que, no começo, foi muito difícil ser aceita por algumas companheiras de equipe:

– Quando eu cheguei, mutas das meninas se assustaram, porque elas imaginavam uma coisa e quando viram era outra…. Mas, mesmo assim, eu impressionei um pouco, né. Quando se fala em atleta trans, o povo confunde com homem. Já imagina: ai, meu Deus. É um homem. Querendo ou não, no início da transição, você tem uma feição muito forte, você tem músculos fortes, você não é aceita no esporte feminino ainda. Mas não tem a mesma força de antes. De jeito nenhum.

Tifanny disse que sentiu bastante a diminuição da força, da potência e da velocidade do ataque depois da mudança do gênero:

– A mente pensa uma coisa e o corpo faz outra. A cirurgia me deixou mais vulnerável dentro da quadra. Eu fico cansada, eu engordo mais, eu fico muito lenta, muito mais lenta do que antes. Não consigo uma recuperação fácil de um jogo para o outro – conta.

A ponteira/oposta diz confessa que sonha com uma chance na Seleção Brasileira.

– Esse ano eu fiquei entre as 12 maiores pontuadoras. Eu estou longe de ser a maior pontuadora. Continuo jogando bem, como uma atleta de qualidade, de alto nível, mas para a seleção tem jogadoras jovens aí que estão jogando melhor do que eu, dando porrada mais forte do que eu e que tem saúde para jogar um jogo atrás do outro. Eu não tenho mais essa saúde, mas se for convocada, eu irei – disse.

Primeira transexual a jogar uma Superliga de Vôlei, Tifanny deixa um recado para quem, assim como ela, não via correspondência entre a mente e o corpo.

– Não desista dos seus sonhos. Você deve ser feliz. Você deve correr atrás. Se não der certo, você correu, você não desistiu. Se você é uma mulher trans ou um homem trans do esporte, o mais importante é você estar feliz com o seu corpo e com a sua nova forma de viver, como o que você sonhava primeiro, ser uma mulher ou um homem de verdade.

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